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quinta-feira, 14 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16304: Notas de leitura (858): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte IV: depois de 3 meses em tratamento do paludismo, em Conacri, o médico vai para a frente leste, em junho de 1967, regressando a casa em janeiro de 1968


Guiné > 1970 > s/l > Algures, numa enfermaria do mato, um "médico guerrilheiro" do PAIGC, seguramente cubano, faz um parto.  Uma das célebres fotos de Bara István o fotojornalista húngaro, nascido em Budapeste. 1942, que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. Ocorre-nos perguntar se médico. parturiente e criança (do sexo masculino) ainda estarão vivos. Oxalá /inshalla / enxalé!

Título da imagem em húngaro: "0084_Bara Istvan_Szules a dzsungelben 5, Guinea Bissau_1970.jpg [Em português, um nascimento no mato],

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia / with our best wishes...)

Estamos gratos a este conhecido fotojornalista magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Isttvàn Bara continua manter, na sua página na Net, na sua galeria, esta e outras fotos que documentam bem a dura realidade da vida dos guerrilheiros do PAIGC e da população sob o seu controlo.  artimos do princípio que estas imagens são do domínio público.

Tentámos em tempos contactá-lo por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria. A Hungria, como se sabe,  é hoje um membro da União Europeia, e da NATO,  mas 1989 tinha um regime de partido único, e estava integrada no Pacto de Varsóvia. Penso que o fotojornalista de ontem se adaptou, com sucesso,  aos novos tempos e à economia de mercado. Na qualidade de diretor do MIT, e de fotojornalista com prestígio internacional, integrou em 1985 o júri do famoso prémio World Press Photo (mas ambém em 1986). Recorde-se que ainda estávamos em plena guerra fria.

Há apenas duas fotos, tiradas por ele, no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum.


Quarta parte, enviada a 13 de julho último,  das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue.  



Foto à esquerda:

O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos; eis a última de quatro partes em que foi dividida a publicação, no nosso blogue, da entrevista realizada pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, médico do primeiro grupo de clínicos cubanos chegados em junho de 1966 à Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] para apoiarem o PAIGC na sua luta pela Independência.

Trata-se da primeira de três entrevistas organizadas pelo autor e que constam no seu livro, escrito em castelhano, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.]. [Disponível "on line"em formato pdf, ].

Seguir-se-ão os depoimentos de Amado Alfonso Delgado (médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia) e Virgílio Camacho Duverger (médico militar, especialista em cirurgia geral), onde cada um deles relata algumas das suas histórias de vida  passadas naquele contexto durante as suas missões,  de acordo o guião de entrevista utilizado pelo investigador. "(D)o outro lado do combate" é o título escolhido  por mim para explicitar o propósito da publicação deste meu trabalho neste espaço de partilha.

O livro merece uma leitura integral: o autor conseguiu localizar e entrevistar 15 médicos cubanos que estiveram, como "voluntários" em missões no estrangeiro, de "ajuda humanitária" e "solidariedade internacionalista", de 1963 a 1976, em diversos contextos africanos: Argélia, Guiné-Bissau, Congo Leopoldville, Congo Brazzaville  e Angola.

A primera brigada sanitária cubana chegou à  Argélia en maio de 1963: tinha 55 membros. incluindo 29 médicos- Por  tszões de "segurança de Estado", estas "histórias" tiveram que se manter "secretas".

Só a partir de 2001 é que o jornalista, investigador e escritor  H. L. Blanch [, foto à esquerda,] pode começar a trabalhar este tema. Doze dos entrevistados são apresentados como "médicos guerrilheiros"; os outros 3 (incluindo uma mulher) integraram a missão da Argélia, que não  era militar (nem, portanto, secreta).  Recorde-se que a Argélia tornou-se independente em 1962, depois de uma longa e sangrenta guerra contra a França.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade),  não farei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos:  apenas coloquei  entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento socio-histórico ao que foi transmitido,  com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos deste blogue.

2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO [IV]

Para melhor compreensão da contextualização deste último fragmento sobre o médico em título, sugere-se a leitura dos P16224, P16234 e P16285, primeira, segunda e terceira parte destas "notas de leitura" (*).

O primeiro poste está relacionado com a preparação para a missão africana, a viagem (secretíma) de barco até à Guiné-Conacri e os primeiros contactos com a estrtutura do PAIGC noterreno. O segundo tem a ver com a  explicação/caracterização do leque de actividades clínicas presentes no quotidiano de um médico naquela guerra de guerrilha, das duríssimas condições logísticas vividas em bases improvisadas, provisórias e de parcos recursos, ora socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora cuidando das maleitas apresentadas pela população sob o seu controlo. Por fim,  no terceiro poste,  o entrevistado fala das actividades operacionais em contexto de bigrupo durante os primeiros três meses de 1967 na região [frente] Norte [Sambuiá] até ao momento em que começou a ter vários problemas de saúde que o obrigaram a fazer uma viagem, já em março de 1967.  até Conacri para recuperação/restabelecimento. e onde ficou 3 meses.

Utilizando o mesmo instrumento já apresentado no P16234 [Suprintrep n.º 31, de 13 de fevereiro de 1971 - P2787] dá-se conta na linha azul (mapa abaixo) da geografia dos itinerários percorridos pelo médico Domingo Diaz, também designados por “corredores”, ligando as diferentes bases do PAIGC, durante os primeiros oito meses da sua missão [julho de 1966 a março de 1967].

A estrela verde corresponde aos itinerários utilizados durante o segundo período na região [frente] Leste, entre junho e dezembro de 1967, com destaque para as actividades desenvolvidas em Madina do Boé e Beli.


Mapa das regiões [frentes e bases do PAIGC]. A linha azul corresponde ao primeiro período da missão de Diaz Delgado  (de julho de 1966 a março de 1967), na Frente São Domingos / Sambuiá. A estrela verde corresponde ao segundo período (de junho a dezembro de 1967), na Frente Bafatá  / Gabu (Sul). Infogravura adapt. de Supintrep nº 31, fevereiro de 1971.

Se em junho de 1967 Diaz Delgado  vem de Conacri, onde esteve a ser tratado de uma crise de paludismo, para a região do Boé, não faz sentido a nossa referência, no poste anterior [P16285],  à Op Cacau, realizada em  4/6/1967, e em que morreu o cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585, na região de Bricama (Farim), justamente no dia em que fazia 25 anos... 

O médico cubano refere uma data anterior,  março de 1967, para o ataque das NT a Sambuiá,  na véspera de ser  evacuado para Conacri com paludismo, regressando ao fim de 3 meses... No período em que o Diaz Delgado esteve na Guiné, na frente norte, entre agosto de 1966 e março de 1967 e depois na frente leste, entre junho de 1967 e janeiro de 1968, não temos informação de mais nenhum comandante de companhia das NT morto em combate numa operação. O Diaz Delgado pode estar a querer referir-se a um alferes, substituto do comandante de companhia. Quem poderá ter morrido em março de 1967 no ataque à base de Sambuiá ?









Indice da obra. A versão em pdf não está paginada,  Hedelberto López Blanch: «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf. [A versão disponível em pdf,. embora integral, não está paginada; em papel a obra tem 248 pp, em versão digiral 147 pp.]


Capítulo 10 - Onde o tempo não se mede pelo relógio” (continuação). Transcrição da entrevista de Diaz Delgado, com as seis últimas questões [da 23ª à 28ª, identificadas por nós em numeração romana] (**)


(xxiii) Depois da recuperação em Conacri, 
aonde o colocaram?


Após um forte tratamento médico e com uma recuperação quase total, enviaram-me para a zona [frente] Leste. Esta região era um pouco mais tranquila do ponto de vista militar, embora se realizassem várias operações. Por exemplo Víctor Dreke [, o chefe da missão cubana, em Conacri] dirigiu um dos ataques a um quartel. Anteriormente [novembro de 1966] tinha-se verificado ali um combate importante onde mataram um dirigente do PAIGC, o comandante Domingos Ramos.

[Domingos Ramos foi morto em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (curiosamente o dia do meu 16.º aniversário), sendo considerado, por esse facto, um herói da Guiné-Bissau, uma vez que fez parte do grupo de pioneiros da luta de libertação, sob a liderança de Amílcar Cabral (1924-1973). Morreu ao lado do cubano Ulisses Estrada.Tem o seu nome ligado à toponímia e a instituições de ensino do país. O seu rosto figura em notas do Banco Central da Guiné-Bissau – exemplo da nota de cem pesos de 1983 e 1990. Tinha também um irmão na guerrilha, o Pedro Ramos – P16123].


[Imagem à esquerda: Efígie de Domingos Ramos, em nota de 100 pesos do Banco Central da Guiné-Bissau, emitida em 1990].


Para Domingo Diaz, a frente Leste era uma região onde se combatia, mas não com as mesmas características das do Norte. No Leste era uma zona mais isolada, com uma fronteira amiga, ou seja, a Guiné-Conacri.

Na zona de Madina do Boé morreu um companheiro cubano por uma úlcera perfurada ao comer umas folhas muito ácidas daquele lugar, que se chamam "foli" [também se diz "fole", com o fruto faz-se sumo]. Os nativos comem-nas para ter mais força e reanimarem-se, pois é muito ácida. 

A este companheiro se lhe perfurou o estômago e quando chega às minhas mãos está em agonia. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para lhe conter a hemorragia, e,  como carecíamos de instrumentos cirúrgicos, tentámos transferi-lo para o pequeno hospital de Boké, na Guiné-Conacri, mas faleceu durante a viagem. Este companheiro foi sepultado ao lado da base aonde nos encontrávamos [no Boé].

[A morte deste cubano – o tenente Radamés Sánchez Bejerano – ocorreu em 19 de julho de 1967, cinco dias depois de um ataque de artilharia efectuado pelos guerrilheiros do PAIGC ao quartel de Madina do Boé, conforme depoimento do médico Domingo Diaz publicado no livro «La Historia Cubana en África – 1963-1991», de Ramón Pérez Cabrera, 2011, p. 152. (Imagem da capa, à direita),

[ Aí se refere que após concluído o ataque, e na sequência da retirada, o tenente Radamés Sánchez perdeu-se na mata durante dois dias e por efeito de ter fome comeu umas folhas muito ácidas que lhe provocaram lesões no estômago. Tinha vinte e nove anos. (…) Esta foi a segunda baixa no contingente cubano em missão na Guiné-Bissau, sendo a primeira a de Félix Barriento Laporté, ocorrida duas semanas antes, em 3 de julho de 1967, durante o ataque ao quartel de Mejo. Na retirada, o artilheiro cubano morreu ao ser atingido por uma granada de obus. Tinha vinte e cinco anos. (op.cit. p.152)].


(xxiv) Que características tinham 
os guineenses?

Recordo muitos nomes valiosos, de chefes e soldados muito valentes que estavam dispostos a morrer antes de um cubano cair nas mãos do inimigo. Às vezes ouve-se falar de pessoas que são mais ou menos combativas. Creio que a guerrilha mais combativa, decidida e valente que havia em África naquela época, era a integrada pelos homens dirigidos por Amílcar Cabral [1924-1973].


(xxv) Nas caminhas pelas matas 
teve experiências com serpentes?


Claro que sim. Atendi vários com mordidelas de serpentes e também vi morrer à minha volta seis nativos por esse motivo. Eram principalmente da população civil. 

Recordo um caso na Zona Leste, um homem que chegou em muitas más condições e lhe tinham feito um garrote na perna, a qual estava em muito mau estado, com muitas borbulhas e praticamente preta. Comecei a tratá-lo e eu tinha uma ferida no pé. Usava  uns chinelos de plástico [hoje, havaianas] que os naturais utilizavam muito e a que me acostumei,  a esse tipo de calçado. Não me lembrei que tinha essa ferida no pé e já havia visto morrer gente à minha volta por picadelas de serpente.

Para esse tratamento fazíamos um corte em cruz no lugar da picada, levantávamos a pele nessa zona e começávamos a drenar para que saísse o sangue. Todo esse líquido me ia caindo na ferida que eu tinha no pé. Não sabia se isso me podia fazer mal ou não. Tomei a decisão de colocar um garrote na perna e fazer-me uma ferida. Não tinha bisturi, senão um canivete, que não estava esterilizado, mas era tanta a adrenalina que não senti o corte, e comecei a drenar. Um companheiro cubano controlava o garrote. Não tínhamos soro antiveneno para aplicar nessa zona. Em cada quarenta e cinco minutos aliviava dez minutos o garrote para que o sangue fluisse.

Passaram as horas e não senti nenhum sintoma. Provavelmente tomei esta decisão muito apressada, mas como tinha visto morrer cinco pessoas não quis arriscar a ser mais a sexta. Os companheiros que estavam comigo eram gente competente, um grupo de tropas especiais de dez guerrilheiros, embora não estivessem acostumados às lides  médicas. Dois deles desmaiaram, mas depois outro ficou a ajudar-me até ao fim.




Um curioso mapa da Guiné, sem data nem origem... Veja-se como os cubanos viam o território. Os únicos rios sinalizados são o Farim e o Corubal, Madina (do Boé) tem a mesma importância que as outras povoações donde faltam topónimos importanets como Nova Lamego (Gabu), Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa, Xime, Bambadinca, Catio, Cacine... Ziguinchor (no mapa, grafado como Zinguinchor), no Senegal, e Boké e Conacri na repúblcia da Guiné são as três únicas referências, nos países vizinhos,  que convinha ficar... Fonte: H. L. Blanch (2005).



(xxvi) Quando e como regressou 
da Guiné-Bissau?


Regresso em janeiro de 1968, ou seja, estive nesta missão durante vinte meses e em zonas de combate cerca de dezasseis. Regressei em más condições. Quando parti tinha 80 quilos e saí da Guiné-Bissau só com cinquenta. Com o objectivo de me recuperar, levaram-me a Conacri onde embarquei no navio cubano Pinar del Rio, que ia com destino ao Congo Brazzaville. Esses sete dias de viagem, mais uma semana no Congo, carregando troncos de árvores, e outra semana para regressar à Guiné-Conacri para recolher os restantes companheiros, serviram para me restabelecer um pouco.

O meu grupo regressa com o que pensámos ser aquele que nos iria substituir, uma vez que quando tínhamos oito meses de actividade em território da Guiné-Bissau, chega o segundo grupo cujo objectivo era reforçar a missão. No final regressamos todos juntos.

Desse segundo grupo quero fazer menção ao doutor Raúl Currás Regalado, que esteve todo o tempo na Zona Sul da Guiné-Bissau. Posteriormente foi cumprir uma missão internacionalista em Angola, aonde participou na companhia do clínico cubano Martin Chang Puga em várias acções de guerra. Durante uma deslocação, o veículo aonde seguiam voltou-se e perderam a vida. Currás tinha características excepcionais e deixou dois filhos e a esposa. E Chang, que não esteve na Guiné-Bissau, era epidemiologista, e também deixou filhos e esposa. [Os dois são considerados "mártires" pelo reime cubano].


(xxvii) Como foi a chegada do grupo 
a Cuba?


Em Cuba fomos recebidos pelo então capitão Guillermo Rodriguez del Pozo, chefe dos Serviços Médicos das FAR [, Forças Armadas Revolucionárias], e seu adjunto, Ángel Fernández Vila. Chegámos a Mariel e fomos para um acampamento aonde durante dois dias nos fizeram exames médicos. Ali nos foram visitar o comandante Pedro Miret, designado por ministro das FAR  Raúl Castro [n. 1931, atual presidente de Cuba]. 

Sentimo-nos muito orgulhosos e reconhecidos pelas palavras que nos dirigiram, e a todos os companheiros que participaram nesta missão nos entregou uma pistola «Makarov», a qual guardo ainda. [Pistola semiautomática, de 9 mm, que entrou em 1951 ao serviço das forças armadas e políciais da antiga União Soviética, substituindo a obsoleta Tokarev].


(xxviii) Que fez ao regressar 
a Cuba?

Conclui a especialidade de neurocirurgia. Já tinha experiência desde quando era estudante de medicina ao prestar apoio nos Centros. Nesse tempo existiam somente três mil médicos em Cuba e os cirurgiões eram muito poucos. Antes de partir para a Guiné-Bissau fiz o internato com o sistema do Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia (INCA), criado pelo comandante René Vallejo para formar no imediato cirurgiões e anestesistas. Nesse ano de internato realizei operações de cirurgia superior e quando regressei da missão queria fazer neurocirurgia. 

Estive três anos e meio no Instituto de Neurologia e Neurocirurgia e graduei-me como especialista de primeiro grau nessa área. Depois estive oito meses no Hospital Joaquin Castillo Duany, no Oriente, como chefe dos Serviços de Neurocirurgia, e mais tarde transferi-me para o Hospital Naval como chefe da mesma especialidade, até 1979. Daí passei para o Ministério do Interior com a perspectiva da fundação do CIMEC [Centro de Investigaciones Médico-Quirúrgicas] em 1982, aonde trabalho desde o seu início como vice-director para a docência e a investigação.




Guiné > c. 1966//67 > s/l > Provavelmente base de Sambuia, em 1967... Da direita para a esquerda, os médicos Pedro Labarrere (falecido),  Domingo Díaz Delgado e Teudy Ojeda... O primeiro da direita era o chefe do grupo cubano da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina). Fo anexa ao livro de H.L. Blanch (205). Reproduzida com a devida vénia...



Domingo Diaz Delgado - Nota biográfica (adapt por JA):

(i)  nasceu em 1936, numa povoação chamada Florencia, na província de Camaguey, mas foi registado em Arroyo.  Arenas, na província da cidade de Havana;

(ii) terminou o bacharelato no Instituto de Marianao,  em 1957;

(iii) começou a estudar medicina em 1959, devido a estar fechada a Universidade desde 1956, quando se agudizou a luta contra o ditador Fulgêncio Batista Zaldivar (1901-1973);

(iv)  em meados de 1958 foi detido pela ditadura e levado à Décima Estação de Polícia situada no El Cerro, em Havana; ali foi torturado durante vários dias, mas, por alguns esforços que foram desenvolvidos, foi libertado e saiu para o México;

(v) regressou ao país em janeiro de 1959, depois do triunfo da revolução castrista;  decidiu retomar os seus estudos, matriculando-se na Escola de Medicina.

(vi) em 1961, quando se funda a Associação de Jovens Rebeldes, passou a ocupar o cargo de secretário organizador na Escola de Medicina;

(vii) mais tarde, em 1962, aderiu à União de Jovens Comunistas;

(viii) desde os primeiros anos, trabalhou como interno  de cirurgia no Hospital Militar Carlos J. Finlay;

(ix) terminou o internato de cirurgia em 1965;

(x)  pertenceu ao grupo de médicos que subiu, em 14 de novembro de 1965,  ao Pico Cuba Turquino, a cuja graduação presidiu o Comandante-chefe Fidel de Castro (n. 1926) [tratou-se da primeira geração de médicos formados pelo regime: 400 médicos e 26 estomatologistas]

____________

Notas do editor:

(*) Postes a nteriores:

22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16285: Notas de leitura (856): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte III: onde se faz referência à possível operação das NT, no corredor de Sambuiá, onde terá morrido o cap inf QP José Jerónimo da Slva Cravidão, da CCAÇ 1585, em 4/6/1967 (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)


Guiné > 1970 > s/l > Algures, numa enfermaria do mato, um guerrilheiro do PAIGC ferido, em tratamento. Uma das célebres fotos de Bara István, o fotógrafo húngaro, nascido em 1942, que esteve 'embebed' com forças do PAIGC, no mato, em 1969/70. É hoje um vulgaríssimo fotógrafo comercial, mas contnua  manter,   na sua página na Net, na sua galeria, esta e outras fotos que documentam bem a dura realidade da vida dos guerrilheiros do PAIGC e da população sob o seu controlo,

Título da imagem em húngaro: "0076_Bara Istvan_Sebesult PAIGC harcos, Guinea Bissau_1970.jpg",,,

Estamos gratos a este conhecido fotógrafo magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Partimos do princípio que estas imagens são do domínio público. Tentámos em tempos contactá-lo por e-mail, mas nunca recebemos resposta, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria.

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria > Guiné-Bissau (com a devida vénia / with our best wishes...)


1. Terceira parte das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo, e enviadas a 28 de junho último. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue.  Reproduzimos aqui a sua mensagem que serve de introdução:

Caros tertulianos:  apresento-vos o terceiro de quatro fragmentos em que foi dividida a publicação, no nosso blogue, da entrevista ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, médico do primeiro grupo de nove clínicos cubanos chegados em junho de 1966 à Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau], para apoiarem o PAIGC na sua luta pela independência [, o outro lado do combate]. 

Trata-se de um trabalho realizado pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch e que consta no seu livro, escrito em castelhano, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. Disponível na Net em versão preliminar, em formato pdf .

No que concerne aos clínicos que cumpriram a sua missão na Guiné são três as entrevistas publicadas nesse livro, cada uma delas relatando algumas das suas experiências, vividas na primeira pessoa por cada um deles, a saber: (i) Domingo Diaz Delgado (médico-cirurgião); (ii)  Amado Alfonso Delgado (médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia); e (iii) Virgílio Camacho Duverger (médico militar, especialista em cirurgia geral). 

O conteúdo de cada fragmento respeita aquela ordem, assim como a estrutura dos guiões utilizados pelo autor nas três entrevistas.

Porque se trata de uma tradução e adaptação para português, não farei juízos de valor sobre os diferentes depoimentos, apenas colocando entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento socio-histórico ao que foi transmitido com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos deste blogue (e, nalguns casos, da própria publicação, ou da versão disponúivel em formato pdf).


[Foto à esquerda:

 O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo:  (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


2. O CASO DO CIRURGIÃO DOMINGO DIAZ DELGADO - Parte III

Para melhor compreensão da contextualização deste 3.º fragmento, referente ao cirurgião Domingo Diaz Delgado, sugere-se a leitura dos P16224  e P16234 (*): o primeiro relacionado com a preparação para a missão africana, viagem e inclusão na estrutura do PAIGC; o segundo de explicação/caracterização da paleta de actividades clínicas presentes no quotidiano de um médico naquela guerra de guerrilha, das condições logísticas vividas em bases improvisadas, provisórias e de parcos recursos, ora socorrendo os guerrilheiros feridos nos combates, ora cuidando das maleitas apresentadas pela população sob o seu controlo.

Em função dos itinerários percorridos a pé por Domingo Diaz, no interior do território da Guiné durante os primeiros seis meses da sua missão [2.º semestre de 1966], este teve a oportunidade de conhecer quase todas as bases do Norte, como sejam os casos de Liador, Sambuia, Naga, Maqué, Morés e Sará.

Considerando este facto, um militar das NT, cuja identidade se desconhece e utilizando uma cópia do mapa da Guiné existente à época, assinalou em 1968 a localização de bases dos guerrilheiros, de zonas de infiltração destes a partir dos países circunvizinhos, de áreas onde a acção da guerrilha era mais intensa e dos aquartelamentos das unidades militares portuguesas.

Dando conta desse levantamento, reproduzimos abaixo uma dupla imagem: o original retirado do P14391 e a cópia extraída do livro de Renato Monteiro & Luís Farinha, (1990),  Guerra Colonial - Fotobiografia. Lisboa. Publicações Dom Quixote, Circulo de Leitores e Autores. pp. 130/131, com a devida vénia. [ O Renato Monteiro é membro da nossa Tabanca Grande e passou pelo Xime e Enxalé,  ao tempo da CART 2520,  em 1970, sítios por onde também passarei dois anos depois...]



Mapa da Guiné (original e cópia). A cópia refere-se à localização de bases dos guerrilheiros, de zonas de infiltração destes a partir dos países circunvizinhos, de áreas onde a acção da guerrilha era mais intensa e dos aquartelamentos das unidades militares portuguesas, elaborado por militar das NT em 1968, e encontrado um ano depois num dos aquartelamentos no interior do território.

Fonte: Renato Monteiro & Luís Farinha, (1990),  Guerra Colonial - Fotobiografia. Lisboa. Publicações Dom Quixote, Circulo de Leitores e Autores. pp. 130/131. (Com a devida vénia...)

Continuação da entrevista com Diaz Delgado (no docuemto em pdf, a que tivemos acesso, as páginas não estão numeradas. mas o total da entrevuista corresponde, no pdf, ao cap X (pp. 65/78). O Diaz Delgado regressou a Cuba em janeiro de 1968.

Para ligar o presente texto com o anterior,  a questão n.º 17 (xvii, na nossa rnumeração romana) foi repetida. Tradução, fixação de texto, negritos,  itálicos e realces a cor são da nossa responsabilidade bem como todas as notas em parênteses retos.

Este documento merece ser conhecido e parcialmemte partilhado com os nossos leitores, e em especial os camaradas e amigos da Guiné.

Cuba terá mandado cerca de 60 "voluntários internacionalistas" para apoiar a luta do PAIGC, entre 1966 e 1974 (entre os quais 9 ou 10 médicos).  A mortalidade foi elevada (cerca de 15%), apesar das grandes preocupações de Amílcar Cabral com a sua segurança. Conhecemos pelo menos os nomes de 9 combatentes "internacionalistas cubanos" mortos ao lado dos guerrilheiros do PAIGC:  tenente Raúl Pérez Abad, Raúl Mestres Infante, Miguel A. Zerquera Palacio, Pedro Casimiro Llopins, Radamé Sánchez Begerano, Eduardo Solís Renté, Felix Barriento Laporte, Radamés Despaigne Robert e Edilberto González...

O primeiro a tombar em combate foi Félix Barriento Laporte, em 2 deJulho de 1967, no ataque ao quartel de Beli, a nordeste de Madina do Boé. 


(xvii) Tem outras memórias da estadia 
em Sará?

Um dia, pela madrugada, chegou à nossa tabanca (assim se chamam as aldeias ali, nas quais existem várias construções que podem ser 7, 8 ou 10) um miúdo que se chamava Kumba [imagem ao lado, a ser assistido pelo cirurgião Domingo Diaz], com aproximadamente quatro anos. Estava em boas condições gerais, mas com uma grande ferida na perna direita onde se tinha lesionado, vendo-se o osso e as artérias, pois foi na face anterior. Impressionou-me o estado anímico em que chegou, com naturalidade, sem uma lágrima, nem um sinal de dor.

(…) Foi tratado pelo ortopedista Teudi Ojeda e por mim. (…) Durante o tratamento sem anestesia, Kumba manteve-se igual, sem uma lágrima e sem manifestar dor. A esta situação já nos tínhamos habituado particularmente na população adulta.




(xviii) A que se deve essa resistência?

Creio que é um problema de cultura, de formação, das condições duras que se vive naquele país. Por uma razão de formação e de valentia, os habitantes desta parte de África controlam e resistem à dor. Fizemos operações de abdómem sem anestesia a pacientes conscientes, que não se queixaram. Isto também acontece nos países asiáticos como o Vietname. Doentes com uma perna partida são tratados e não expressam a dor. Resistem. Guardo uma foto de Kumba, quando o tratámos no acampamento,




(xix) Quantas cirurgias realizou 
nesse tempo?

A frio realizei umas quantas, em patologias que necessitavam como hérnias, inguinais, umbilicais, enguino-escrotais. Operei umas vinte hérnias com anestesia elementar que me proporcionava o doutor Pedro Labarrere, o clínico que às vezes fugia da anestesia, porque o sistema chamado éter rainha ou éter gota-a-gota, que se realiza primeiro com uma indução de cloro de etilo para que o paciente perca a consciência rapidamente e depois se aplicava o éter gota-a-gota. Este tipo de anestesia, que inclusivamente, nessa época, era muito frequente nos hospitais de Havana, provocava muita secreção, e depois teríamos de lhes dar atropina por administração parental, para a diminuir.

Não tivemos nenhuma complicação, mesmo sem a administração de antibióticos. Nesta região, por estarem virgens os organismos dos seus habitantes, com uma dose mínima de antibiótico se pode controlar facilmente qualquer infecção. Também vimos doentes com hérnias sujas que não se infectavam e que no início não o entendíamos.

A isto se adiciona o clima desfavorável com um calor insuportável no verão [, estação das chuvas], embora no inverno [, estação seca,] fizesse bastante frio. Apesar do grande calor, as feridas não se infectam. Esta situação era-nos favorável, porque a quantidade de antibióticos que dispúnhamos era mínima e vinham do exterior, com as consequentes dificuldades de transporte, uma vez que em Sará estávamos a cinco dias de caminho até à fronteira com o Senegal, cujo governo não ajudava a guerrilha do PAIGC, tornando muito complicada a obtenção de medicamentos através desta via.

Inclusivamente transportar guerrilheiros feridos para o Senegal era um problema e muitas vezes havia que fazer um grande percurso por terra, contornando toda a fronteira até chegar a Koundara, no Norte da República da Guiné, para depois os levarmos a Conacri, onde recebiam o apoio médico. No total, entre o ortopedista e eu, realizámos umas cento e cinquenta operações a civis e militares, incluindo hérnias, feridas de balas, fracturas e outras urgências.



(xx) Quando deixou o bigrupo? 

Com o bigrupo continuei a acompanhá-lo permanentemente pela Zona Norte, mas mais tarde comecei a ter vários problemas importantes de saúde como paludismo crónico, viroses, e uma lesão infiltrativa tuberculosa. Por essa razão o chefe da missão, que naquela altura era já o comandante Víctor Dreke (Moja), decidiu retirar-me até ao meu restabelecimento total.

Mas antes da saída e ainda na base de Sambuiá  [,  Zambulla, no original], quase todos os dias as tropas portuguesas nos atacavam com morteiros e canhões que caíam muito perto de nós. Essa base portuguesa ficava somente a quinze minutos a pé. Mas uma noite notámos que as canhoadas caíam mais longe, passando-nos por cima e sentindo o som, caindo muito mais longe. Eu estava com o chefe do grupo da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina), surgindo-nos a dúvida de que estas canhoadas tão longe queriam dizer que as tropas estavam avançando por terra para nos surpreender. Esta nossa percepção estava certa, uma vez que pelas quatro da manhã uma companhia constituída por portugueses e naturais começaram o ataque.

Por sorte, os primeiros tiros foram do nosso lado, na sequência de uma ronda que estava a ser feita por dois guerrilheiros que, ao detectarem a presença do inimigo,  reagiram e acabaram por matar o comandante da companhia. [Possível referência à Op Cacau, em 4/6/1967, em que morreu o cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585, na região de Bricama (Farim), no dia em que fazia 25 anos, se bem que o médico cubano refira outra data, março de 1967, quando foi a seguir evacuado para Conacri com paludismo,, regressando ao fimd e 3 meses: no período em que o Diaz Delgado esteve na Guiné,  na frente norte, entre agosto de 1966 e janeiro de 1968, não temos informação de mais nenhum comandante de companhia morto em combate numa operação] (**).

Por outro lado, as tropas portuguesas reagiram ao fogo e praticamente devastaram todas as palhotas da base, onde conviviam os guerrilheiros com a respectiva população. Só tive tempo, pois ouvia a fala dos atacantes, de dar uma volta à minha cama (recordo que estava com uma crise de paludismo) e rastejar até desaparecer no meio das explosões das granadas de morteiro e dos disparos. Aquilo transformara-se num inferno.

Mas, como quase sempre sucedia, quando havia tiros de resposta, não avançavam, pois não estavam dispostos a combater. Esta base era dirigida por Campané, um homem muito valente e que se bateu com afinco detendo o ataque. Certo é que, se [as tropas portuguesas] têm avançado,  não teria ficado nada.

Na rectaguarda do acampamento passava um rio no qual entrei com água pela cintura cerca de três horas, embora as balas me passassem por cima. De qualquer maneira mantinha a pistola, pois o meu desejo era de nunca ficar prisioneiro.

Posteriormente começaram a sobrevoar a zona alguns helicópteros, baixando para recolher os mortos e os feridos. Passava do meio-dia, regressei à base que estava completamente destruída e não pude recuperar nenhum dos meus bens, nem tampouco os ténis. Este tipo de calçado era mais aconselhável para aquele contexto, pois como tínhamos de atravessar muitos rios e riachos, secavam mais rápido que as botas e eram mais leves.




Guiné > Região do Cacheu e região do Oio > Os nossos aquartelamentos junto à fronteira com o Senegal e a Frente (do PAIGC) São Domingos / sambuiá. Fonte: SUPINTREP nº 31, fevereiro de 1971.


(xxi) Quando saiu para a República da Guiné?

No dia seguinte ao do ataque a Sambuiá,  inicio a viagem pelo mesmo caminho por onde tinha entrado havia oito meses [a povoação de Yiriban, rumo a Ziguinchor]. Isto aconteceu em março de 1967. Volto a Conacri onde permaneci cerca de três meses em recuperação. O comandante Víctor Dreke, que era o chefe da missão militar cubana, deu-me um apoio muito bom.



(xxii) Recorda outros factos interessantes da sua primeira etapa no norte da Guiné-Bissau?

Tenho muitos para contar. Por exemplo, nas primeiras caminhadas que fiz perdi todas as unhas dos dedos dos pés. Ficaram pretas e caíram porque não estava preparado para esse desempenho, uma vez que os pés se mantinham quase todo o tempo húmidos e as travessias eram intermináveis. Depois de ter perdido peso, e com o treino diário, consegui ter mais resistência. Fiquei tão fraco que parecia uma “corda de violino”. Mas fiquei com o hábito de andar e em Cuba percorro cinco quilómetros todos os dias.

Noutra ocasião, quando me encontrava na base de Liador, também no Norte, recebi uma mensagem num pequeno papel escrito por Francisco Mendes,  um dos chefes militares da zona a quem chamavam de Chico Mendes ou Chico Té. Ele, atraído pelo triunfo da Revolução, foi o primeiro presidente da Assembleia do Poder Popular desse país e morreu depois num acidente. Nesse papel solicitava-me que fosse ver uma mulher que estava com sinal de parto e em dificuldade de parir.

Essa noite saí com outro companheiro e um guia até uma aldeia um pouco distante e nos perdemos. No trajecto cruzamos dois corredores com muito cuidado e com a arma na mão, pois por ali passavam regularmente viaturas com portugueses. Quando chegámos, encontramos uma mulher aparentando uns vinte e quatro anos (e com aquela idade era quase uma velha pois a esperança de vida, naquela época, era de quarenta anos). Estava no chão, rodeada de galinhas e uns porquitos e já havia parido um dos bebés, pois tinha gémeos.

Eu tinha bastante experiência em partos, porque durante a minha carreira fiz as práticas no Hospital da Maternidade Obrera [Operária], aonde realizei mais de uma centena. Como este bebé se encontrava emperrado, sabia que devia introduzir a mão para o retirar. Ao ver que o bebé estava em boa posição,  lá o conseguir extrair sem problemas.

A mãe tinha feito um quadro psiquiátrico e que me pareceu ter contraído tétano. Começou por dizer que o primeiro filho não era seu, mas só o segundo, e queria matar o primeiro, no que foi impedida pelos seus familiares. 

No entanto, administrei-lhe dez milhões de penicilina nos dias seguintes e o trismo, que é a contracção da mandíbula que se vê nos tétanos, cedeu. Ela sobreviveu, embora mantendo o quadro psiquiátrico.

Continua.
 ____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriors:

22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)

(**) Vd. postes de:

24 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6638: Lista alfabética dos 24 capitães que morreram em campanha no CTIG, dos quais 10 em combate, todos comandantes de companhias operacionais (9 Cap QP, 1 Cap Mil) (Carlos Cordeiro)

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1898: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (52): O ataque a Missirá de 15 de Julho de 1969, visto pelo bravo mas modesto Queta Baldé



Guiné > 1970 > Uma das imagens porventura mais emblemáticas da guerra colonial/guerra de libertação. Um guerrilheiro do PAIGC jaz morto, no chão da mata, com a sua Kalash ao lado. Foto muito provavelmente obtida no sul, na região de Tombali. A foto original (entretanto editada por nós) é do repórter fotográfico húngaro Bara István (n. 1942), que acompanhou a guerrilha do PAIGC em 1969 e 1970 (não sabemos exactamente em que circunstâncias: num das fotos, ele próprio deixa-se fotografar com uma Kalash pendurada ao pescoço, o que para um fotojornalista de hoje seria altamente reprovável, do ponto de vista deontológico; pode pôr-se a hipótese de, na época, ter lá estado apenas como simples fotógrafo, e não como fotojornalista, ao serviço do governo do seu país e da própria máquina de proganda do PAIGC, tal como acontecia com os jornalistas portugueses, autorizados a visitar o TO da Guiné: estou-me a lembrar, por exemplo, do Amândio César; recorde-se, por outro lado, que na época a Hungria fazia parte do Pacto de Varsóvia e, portanto, era um dos apoiantes do PAIGC).

Legenda, em húngaro: Bara István: Elesett PAIGC katona, Guinea Bissau, 1970. De qualquer modo, estamos gratos a este conhecido fotógrafo magiar pelas imagens sobre a guerra colonial / guerra de libertação na Guiné-Bissau que disponibilizou na sua página. Partimos do princípio que estas imagens são do domínio público. Tentámos contactá-lo por e-mail, até agora em vão, para obtermos autorização para divulgação de mais fotos da sua fotogaleria. Tudo indica que ele hoje se limita a gerir o seu estabelecimento de fotografia e artigos fotográficos, em Budapeste. Enfim, teve que fazer pela vida, como todos nós...

Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria (com a devida vénia / with our best wishes...)

Guiné > Bissau > Janeiro de 1970 > "O Tigre de Missirá em Bissau... Comentário: Mais tristeza no olhar é impossível. Fui tratado pelo David Payne e passei uma semana a dormir. Nas minhas cartas, quando me despeço digo sempre que já estou sobre a acção do Vesperax. Novembro e Dezembro foram meses terríveis, as emboscadas nocturnas à volta da pista de aviação atingiram o sistema nervoso e deixei de poder dormir. Graças a este tratamento, regressou a confiança, a energia, o sabor da vida. Avizinha-se o período operacional mais tumultuoso, de Fevereiro a Abril. Depois volto a Bissau para casar [, em Abril de 1970].

Foto e legenda: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Mensagem do Beja Santosa, com data de 15 de Junho de 2007:

Caro Luís, no tempo em que se comemoram os 50 episódios no blogue, quero que saibas que esta aventura, que ainda não chegou a meio, é uma das etapas mais exaltantes da minha vida. Leva-me a ler e a reler o que julgava interdito ou fruto para outra época mais madura; reconduz-me a conversas e a rememorações; tudo é pretexto para dizer a verdade ficcionando e ficcionar com alguma verdade, deixando ao leitor a interpretação do que realmente aconteceu. Em cada episódio rejuvenesço, solidarizo-me, volto ao local do crime sem nenhum azedume. Por vezes dói muito, como no enterro de que aqui se fala. Recordo quando vimos um morto desfeito à morteirada, o Cherno e eu entreolhámo-nos sem falar: qual de nós tirou a vida a este homem? Nunca mais perguntei ao Cherno o que ele pensava, é indigno e deslocado. Muitíssmo obrigado pelo teu empenho em cada episódio que sai, como as minhas memórias fizessem parte do teu tempo, o do passado e do presente. Toda a camaradagem e esta bonita amizade regada em cada semana que passa, Mário.

52ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Texto enviado a 15 de Junho de 2007.

15 de Julho de 1969: a gente de Madina flagelou Missirá e teve desairepor Beja Santos


A versão de Queta Baldé, o mais modesto dos bravos
Queta Baldé, artista do batuque quando era adolescente e vinha de Amedalai ao Cuor, a Enxalé e ao Oio, o veterano 126, é o meu primeiro convidado para falarmos daquele anoitecer em que a gente de Madina saiu a perder de uma flagelação que não chegou a demorar 30 minutos. O Queta irá receber um louvor pela sua acção nessa noite, conforme reza:

Em 15 de Julho de 1969, durante uma flagelação do IN, como apontador de metralhadora ligeira reagiu imediatamente ao fogo e não obstante ter sido a sua arma atingida, continuou no posto com deficiente segurança, incitando todos os seus camaradas na zona mais duramente atingida. Tal atitude concorreu para assinaláveis baixas ao IN e respectiva captura de armamento.

Entrego cópia do louvor ao Queta, ele lê, dobra a folha e começa a falar:

Não esqueci nada, os olhos e os ouvidos guardaram tudo. Viemos pelas 5 e meia da tarde, era uma coluna de duas viaturas, trazíamos chapa de bidão, chapa ondulada, sacos de cimento, petróleo e gasóleo. Nosso alfero tinha ido ao Cossé buscar seis sacos de arroz para a população civil. Arrumámos tudo, os petromaxes estavam bem acessos, uma noite calma, sem vento e sem frio. O furriel Pires informou quem, na manhã seguinte, iria com o nosso alfero a Mato de Cão. Fomos tomar banho e descansar.

Pelas 9 da noite, a minha mulher trouxe o arroz e a mafé, levei a colher à boca quando rebentou a primeira roquetada que caiu perto da messe. O primeiro fogo caiu entre o balneário e as moranças da família do régulo. Fui a correr para o abrigo da porta de armas, peguei na Dreyse e Seco Embaló pegou as fitas com a mão. Eles mandaram para este ataque gente mal preparada, gente que queria avançar e entrar no quartel, como se isso fosse possível connosco. Eles devem ter sofrido muito com a resposta dos morteiros e das bazucas. Nosso alfero foi para o 81 com aquele rapaz pequenino, cabelo cor de palha; Adulai Djaló, Mamadu Djau e Bacari Djassi não pararam com as bazucas, Cherno e Tunca Baldé corriam com o morteiro 81 à volta do quartel.

É então que um tiro me partiu o tapa-chamas. Tive sorte, pois a bala fez ricochete e alojou-se na palmeira do abrigo. Esperei com calma o fogo do apontador da Kalash. Apontei-lhe à cabeça, a arma calou-se. Depois fui varrendo o terreno à volta. Tudo começou com um enorme fogo, eles fizeram meia lua entre a fonte de Cancumba e a porta de armas. Surpreenderam-nos bem, mas não percebo porque é que se enervaram e avançaram para o quartel. Pensei muito, eles devem ter chegado perto de Missirá ao anoitecer , quando estávamos a entrar, e o barulho das duas viaturas confundiu-os. Depois precipitaram-se, fizeram mau uso dos morteiros, um deles foi atingido.

Terá sido nessa altura que eles retiraram com muitos feridos e deixando os mortos e as armas. Não percebo o louvor. Eu tive sorte. Nosso alfero devia ter louvado Seco Embaló, esse sim, tinha as mãos feridas, feria os lábios, aguentou a dor, sem a sua ajuda a Dreyse não tinha feito os estragos que fez.
Queta é um homem cheio de pudor. Tinha-lhe proposto uma agenda para falarmos dos acontecimentos de Julho, a começar pela flagelação do dia 15, uma patrulha de reconhecimento que fizemos com um pelotão da CCAÇ 12, a ida ao Enxalé, o acto desvairado do Benjamim Lopes da Costa, a 3 de Agosto.

Quando Queta não quer falar, o seu olhar imobiliza-se e a sua voz cicia:-Desculpa, agora não lembro, talvez mais tarde, à noite começo a pensar e junto tudo, mas talvez eu não estivesse lá e ninguém me falasse nas coisas de que falas. Desculpa, agora não posso ajudar.

Não quer falar do ataque de nervos do Casanova, não estava na emboscada em que o Benjamim me chamou "branco assassino". Mas quando lhe falei que precisava da sua ajuda por causa da operação Pato Rufia respondeu-me prontamente:
- Sim, nosso alfero escolheu-me para ir à operação, ainda me lembro de muita coisa".

As lembranças do Furriel Pires dessa noite

Voltei a encontrar-me com o Pires na Livraria Barata, na Avenida de Roma. A agenda para a conversa era praticamente livre, mas eu pedira-lhe que revolvesse a memória em torno da flagelação da noite de 15 de Julho. À semelhança da reunião anterior, falámos de tudo sem direcção nem bússola, ouvi a sua versão sobre o estado de saúde do Casanova, falámos das pequenas coisas do dia a dia, ele lembrava-se de ter ido em Junho de 69 a casa da Cristina levar-lhe uma lembrança e trazer outra, não esquecera a sua ansiedade e uma permanente curiosidade em tudo saber sobre Missirá e Finete, registou tudo e adjectivou.
-A Cristina estava preocupadíssima.

Falámos das escalas de serviço, das culturas dentro e fora do aquartelamento, reavivou-me a memória com um episódio que eu já tinha esquecido à volta da visita que o Capitão Figueiras fez a Missirá, em Outubro, quando os soldados fizeram disparos de G3 para os troncos de palmeiras, perto da fonte de Cancumba, parecia fogo de costureirinhas até os veteranos pegaram nas armas e foram até aos abrigos. O Capitão Figueiras estava siderado e não percebia porque é que eu ia ao posto de vigia ver o que se passava.

Depois a noite do 15 de Julho caiu em cima da mesa, ele tinha meticulosamente as suas anotações escritas numa folha. Não esquecera a minha gritaria para dentro do abrigo onde ele ia passando balas a vários apontadores de G3, recordava perfeitamente a bazucada que deflagrou na parede ao lado da messe, o zunir das balas a estilhaçar as telhas do depósito de víveres, as roquetadas a espatifar tudo à volta do balneário, recordava o fogo em crescendo e o súbito silêncio.

Estas duas memórias, curiosamente, esqueciam o que se passou depois. Quando desapareceram os sinais da flagelação, nenhum de nós ficou tranquilo. De facto, espaçadamente, ouviam-se tiros, uma vezes de metralhadora ligeira, outras de pistola, dentro da mata. A gente de Madina parecia querer dizer-nos que podia atacar de novo a qualquer momento. E durante horas foi assim: tiros esparsos, como se a gente de Madina tivesse um código para se reorganizar. O régulo Malã comentara:
- Tiveram baixas, estão a retirar com os feridos, estão a chamar gente que se perdeu, não se preocupe mais.

Dois guerrilheiros, caídos por um dever, junto ao arame farpado de Missirá


Preocupei-me, eram tiros a mais que se ouviram até de madrugada. Depois descansámos até ao alvorecer. Quando a luz nasceu sobre o céu do Gambiel, com o capim molhado do muito orvalho da noite, saímos para o reconhecimento. O primeiro cadáver era de um jovem manjaco que vestia caqui amarelo, jazia de olhos abertos, com a massa encefálica ao lado da calote craniana, a Kalash na mão. Começámos a ver trilhos , e perto dos cajueiros do régulo Malã vimos postas de sangue, algodão e ligaduras, mais à frente mais sangue, granadas abandonadas como se alguém tivesse interrompido uma tarefa ou aligeirasse a carga para transportar feridos. Continuámos até à fonte de Cancumba onde jazia outro corpo desmembrado, seguramente atingido por granada. No céu, pairavam os jagudis, despertos pelo cheiro do sangue.

Concluído o patrulhamento, mandei buscar dois lençóis e uma caixa de sapatos: os mortos seriam enterrados junto ao cemitério mandinga, os miolos do jovem manjaco desceriam à terra com o corpo do combatente. Lembro o protesto de alguns, que exigiam a justiça dos jagudis. Atalhei firme, repeti que queria dois lençóis limpos, duas pás, os combatentes enterram-se com todo o respeito, é uma honra que a todos assiste, caíram por um dever, o nosso dever agora era respeitá-los. Abriram-se as covas, os corpos foram depositados, o mais díficil, tive que fechar os olhos, foi sentir as minhas mãos a pegar aquela matéria escorregadia que depositei dentro da caixa de sapatos. Os soldados preparavam-se para retirar quando os surpreendi dizendo que me ia perfilar e rezar por eles.
-Partimos ao meio dia, temos de estar em Mato de Cão às 4h, vamos descansar um pouco mais.

Só a 17 é que escrevo à Cristina:

Fomos de novo atacados, pelas 21 horas de 15. Tudo inesperadamente, estávamos ainda na sopa quando verdascaram as metralhadoras e os morteiros. A rapaziada estava nos seus dias e o impacto rebelde, depois dos primeiros cinco minutos, ficou atabalhoado. A nota discordante foi a perda de um braço de uma das mulheres de Quebá Soncó, quando uma roquetada atingiu a trave principal da casa, que era um dos meus sonhos mimosos da reconstrução após o 19 de Março. De resto, a nova Missirá ficou incólume, com excepção da mangueira do poço e um bidão do balneário, esburacados. Estranhei a debandada dos rebeldes... A carta termina aqui, recomecei-a mais tarde, devo ter caído a dormir até partir para Mato de Cão.

O Queta é capaz de ter razão, fui injusto com Seco Embaló e com o seu comportamento exemplar. Mas mais injusto fui com o Cabo maqueiro Adão, que aguentou toda a noite o gravíssimo ferimento de Fatumana Soncó, que ele tratou com desvelo até chegar o helicóptero. Aturou toda a noite os escoriados, aqueles que saíram com pés descalços e rasgaram os pés, aqueloutros que se rasgaram a entrar nos abrigos, que levaram com cápsulas a ferver na cara, nos braços, peito e costas. O Adão aguentou tudo, como aguentava os reforços, as ajudas nas obras, as idas a Mato de Cão, as passagens em Finete para ajudar sinistrados.

Muitos anos mais tarde, em 1991, irei visitar Fatumana que vivia num bairro ao pé do mercado de Bandim, em Bissau, na companhia de seu filho Mamadu Soncó, de quem aqui iremos falar, no final da minha comissão, em Agosto de 1970. Foi um reencontro comovente, levei-lhe flores e o seu único braço apertou-me com força e calor. Tanto me comovi que não falámos daquela noite de 15 de Julho, em que Quebá Soncó, o marido, passou perto de mim com o seu braço na mão.


De Jorge Amado a S. S. Van Dine

O pior de tudo é a prostração e os vírus que me deitam abaixo. Vai ser pior no próximo mês, quando eu voltar a cair na cama, totalmente exausto, doente e moralmente ferido. Por razões que aqui iremos falar em breve, vou ainda defender-me escrevendo até cair sobre a secretária, ouvindo música e sobretudo lendo e orando. É nessa semana, por coincidência, que leio duas novelas espantosas de Jorge Amado, sob o título Os velhos marinheiros.

A primeira história é "A morte de Quincas Berro Dágua". Quincas vivia na estúrdia , nas ladeiras e becos escusos de Baía. Fora respeitável até deixar de o ser, abandonara famíia, carreira e nome honrado para viver no meio de bêbedas e nos castelos das meninas. O apelido Berro Dágua ficara-lhe de uma garrafa que levara à boca e onde ele esperava cachaça saiu água que o amedrontou. Quincas morre, a respeitável família prepara velório e enterro, cheia de incomodidade. Os amigos Pé-de-Vento, Negro Pastinha, Cabo Martim e Curió aparecem no velório e quando a família parte, enfastiada, começa a noite delirante com o morto aos ombros, subindo e descendo ladeiras até chegar ao mar donde partem em saveiro, levando Quitéria, a bem amada de Quincas. Todos comem peixada, Quincas é obrigado a beber cachaça que deita fora, pois claro. Veio o temporal que os apanha quando as luzes de Baía brilhavam na distância. E foi aqui que começou a lenda. Capa do romance de Jorge Amado Os Velhos Marinheiros. Lisboa: Publicações Europa-América. 1962 (Colecção Século XX; 48). Capa de Joaquim Esteves.

Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Escreve Jorge Amado:

Ninguém sabe como Quincas se pôs de pé, encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a lavar o saveiro, para os raios a iluminar o negrume. Mulheres e homens se seguravam às cordas... foi quando cinco raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do mundo... no meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira. Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.

História não menos atribulada e divertida é a do comandante Vasco Moscoso de Aragão, um velho marinheiro de opereta que comprara o título , que exibia uma condecoração da Ordem de Cristo paga a peso de ouro e cuja popularidade veio dividir o povo de Periperi, nos arrabaldes de Baía. Uns achavam-no um aventureiro prodigioso, outros um trafulha e embusteiro de primeira água. Até que veio a prova dos 9 quando, de acordo com as leis do mar, o Comandante é chamado ao comando e o navio que vai atracar em Belém. O imediato prepara-lhe uma cilada para o pôr a rídiculo, pede-lhe as ordens finais para amarrar o navio ao cais. Sucedem-se as ordens mais insólitas do mundo: o navio deve ser amarrado com todas as amarras, com todos os ferros, com todas as manilhas, com todas as espias, com todos os strings.

Foram estendidos os cabos de aço, os traveses, enleando o navio definitivamente ao cais. Como se já não estivesse ele de tal modo preso ali com raízes tão profundas, como se as âncoras, as manilhas, os lançantes, já não o garantissem de sobejo contra as piores tempestades e os tufões mais brutais. Tempestades e tufões que nenhum serviço meteorológico previa, nem o olho mais experiente do mais temperado e velho marinheiro.

Vasco Muscoso de Aragão percebe o ridículo em que caiu, foge humilhado. Só que essa noite um tufão apoderou-se da cidade, aquele foi o único barco que resistiu em Belém do Grão-Pará. Assim nasceu outro mito, o que leva o autor a perguntar por onde anda a verdade, qual a fronteira ente o heroísmo e aldrabice.

A outra leitura é muito mais ligeira, O caso do antiquário, por S. S. Van Dine. O senhor Willard Huntington Wright, era um crítico de arte norte-americano que obrigado a estar dois anos de cama devido a um acidente cardíaco, descobriu o prazer de escrever novelas policiais e ganhou a celebridade logo com o seu primeiro livro O caso Benson. Já aqui falei desse pedante, hedonista e intelectual incorrigível que é Philo Vance, um detective amador que sabe tudo de aguarelas de Cezanne, de cerâmica chinesas e até de cães escoceses.

Este romance é por sinal fraco, presta uma grande homenagem a Edgar Wallace que Na pista ao alfinete novo forjara um homicídio praticamente indecifrável, dentro de um quarto fechado. Philo Vance move-se em ambientes de clausura, descobre que antes de um pretenso suicídio houve um crime bem premeditado a qeu se seguirão outros. E, como é timbre nalguns finais de S. S. Van Dine, no termo, quando se deslindou a verdade, pratica-se justiça sem necessidade de julgamento. Sempre que posso, abasteço-me em Bafatá com livros das colecções Vampiro, O Escaravelho de Ouro, Xis e começo a intrometer-me na ficção científica graças aos livros da colecção Argonauta.

Derreado ou não, vou ao Enxalé de surpresa e recebo os periquitos do 4º grupo de combate da CCAÇ 12 para irmos até Sancorlã, depois a Salá e fazermos uma emboscada. Mas é uma época em que escrevo febrilmente, como se estivesse a redescobrir o mundo e a encantar-me no feitiço das palavras. Escrevo faminto de amor, cada vez mais sozinho. Aprendia como escrever é a mais linda garrafa que se pode lançar no mar, à espera de resposta. Dos homens e de Deus.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post desta série > 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1870: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (51): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (5)

domingo, 22 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1685: O mistério da morte do soldado José Henriques Mateus, natural da Lourinhã (Benito Neves / Luís Graça / Jaime B. M. Silva)

Guiné-Conacri > Conacri > Masmorra do PAIGC > 1970 > Prisioneiros portugueses, fotografados pelo fotógrafo húngaro Bara István (nascido em 1942). Legenda em húngaro: "Bara István: Portugál foglyok a PAIGC börtönében, Guinea Bissau, 1970". (Pormenor, foto editada). O Benito Neves, da CCAV 1484, admite a hipótese de o segundo prisioneiro, da fila de trás, a contar da esquerda - devidamente assinalado com um círculo a amarelo - possa ser o seu camarada José Henriques Mateus, natural da Lourinhã, dado como desaparecido no Rio Tombar, afluente do Rio Cumbijã, na sequência da Operação Pirilampo (1) (LG). Fonte / Source: Foto Bara > Fotogaleria (com a devida vénia / with our best wishes...) 1. Mensagem do Benito Neves (ex-furriel mil da CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67). Luís, bom dia: Já estive em contacto com o ex-furriel Teles, comandante de Secção do Mateus, a quem recomendei a consulta do blogue. Sobre o Mateus, disse-me que lhe custa muito aceitar que o 2º. homem da fila de trás [ vd. foto acima] não seja o Mateus. É óbvio que já lá vão 40 anos. Mas penso que, tendo em conta as dúvidas levantadas e constantes, talvez só um contacto com vizinhos ou familiares nos possa ajudar. Vamos esperar e, entretanto, o meu muito obrigado pelo empenhamento e, confesso, muito sinceramente, gostaria muito de ver novamente substituída a pedra do monumento aos que, da tua terra, tombaram em terras de África. Um a menos era sempre bom!!! Um abraço. B.N. 2. Mensagem enviada a Jaime Bonifácio Marques da Silva, meu amigo e conterrâneo, ex-alferes miliciano paraquedista, que esteve em Angola sensivelmente na mesma época em que eu estive na Guiné (1969/71), e que fez parte da comissão organizadora que, na sua (e minha) terra, levou a cabo, em conjunto com a Câmara Municipal da Lourinhã, a iniciativa de monumentalizar a memória dos filhos da Lourinhã, caídos em terras de África, durante a guerra do Ultramar (1961/74). Entre esses bravos, conta-se o soldado José Henriques Mateus (1). Jaime: Como vais tu, a Dina e o resto da família ? Lembrei-me de ti por causa de um camarada e conterrâneo nosso, o José Henriques Mateus, que faz parte do lote dos 20 mortos do Ultramar, naturais da Lourinhã, e constantes do monumento que lhes foi erigido em 2005, na nossa vila. Tu fizeste parte da Comissão Organizadora. Além disso, és vizinho do Mateus... Originalmente até houve uma troca do apelido: na placa original, correspondente à Guiné, ele constava com o apelido Martins... No meu/nosso blogue – Luís Graça & Camaradas da Guiné – apareceu-me agora um camarada de Abrantes que era furriel na CCAV 1484, e que vem relatar os últimos momentos do Mateus... Terá desaparecido nas águas do Rio Tombar, mas a camisa será encontrada, dias depois, nas margens, com a identificação dele, uma imagem de N. Sra. de Fátima e uma nota de 50 pesos (escudos locais)... Há quem o tenha reconhecido mais tarde numa foto dos prisioneiros portugueses em Conacri... Há quem pense (a malta daquela unidade) que ele não morreu, e faça votos para que vocês – comissão organização e autarquia local – voltem a substituir a placa... Sabes alguma coisa deste caso ? Ele era natural da Areia Branca, e devia ser quatro ou cinco anos mais velho do que nós... Por outro lado, é estranho que ele não consta da lista (oficial) dos mortos da Guiné... Sabes quem é a família ? Terá pais e irmãos vivos ou parentes próximos ?... É um estranho caso... Temos que apurar a verdade... Um abraço para ti. 3. Resposta do Jaime, que vive em Fafe e que esteve também por detrás da iniciativa deste município nortenho, de homenagear os seus 37 filhos, mortos no Ultramar (2). Luís: A notícia é estranha. Conheço o irmão. A última vez que falei com ele foi na Páscoa. Foi ele, também, que nos indicou que o nome do irmão não estava correcto. Aliás, estou a recolher elementos dos ex-combatentes da Lourinhã mortos na guerra. Na próxima vez que me deslocar à Lourinhã irei procurá-lo e colocar-lhe esta questão. Logo que tiver novidades contactar-te-ei. Até lá, um abraço para vós Jaime jbms@sapo.pt _______ Notas de L.G. (1) Vd. post de 19 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1676: Vivo ou morto, procura-se o Soldado Mateus, da CCAV 1484, natural da Lourinhã (Benito Neves) (2) Vd. post de 9 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXII: Homenagem de Fafe aos seus 37 ex-combatentes, mortos na guerra do ultramar (Américo Marques) (...) "Obrigado, Américo, em nome da nossa tertúlia. Julgo que, por detrás desta iniciativa do município de Fafe, está também o meu amigo Jaime Bonifácio Marques da Silva, professor de educação física, antigo vereador do desporto e cultura, natural da Lourinhã, ex-alferes miliciano paraquedista em Angola por volta de 1969/71" (...).